quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O alienista - algumas impressões

O alienista é um tipo de relato em que os acontecimentos não são estritamente realistas, no sentido da verossimilhança, mas que, a exemplo de uma fábula, ilustram, simbolizam e criticam os valores da sua época.
Simão Bacamarte, médico formado em Portugal, instala-se em Itaguaí, no interior do Rio de Janeiro com o objetivo de estudar a loucura e sua classificação. Ou como ele próprio dizia: "A ciência, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo”.Vem daí a sua idéia de confinar os loucos num mesmo local. Com apoio da Câmara Municipal, constrói um hospício, designado pelo nome de Casa Verde. Num primeiro momento, Bacamarte confina os loucos mansos, os furiosos e os monomaníacos, isto é, aqueles que a própria comunidade julgava perturbados. Num segundo momento, após muitas leituras e meditações científicas, o Doutor Bacamarte comunica a seu melhor amigo, o boticário Crispim Soares, a idéia de que "a loucura era até agora uma ilha perdida no oceano da razão”; e que ele começava a suspeitar que ela fosse um continente.
A partir de então o alienista (médico de alienados mentais) põe-se a levar para a Casa Verde cidadãos estimados e respeitados em Itaguaí. Pessoas aparentemente ajuizadas, mas que, segundo as teorias do cientista, revelavam distúrbios mentais. O terror se dissemina na pequena cidade. Ninguém mais sabe quem está são ou quem está doido. Atemorizados, os que ainda não tinham sido conduzidos para o hospício tramam uma rebelião.
O barbeiro Porfírio, cuja alcunha era Canjica, passa por cima da Câmara de Vereadores, que não ousa indispor-se com o alienista, e marcha à frente de uma multidão, rumo à Casa Verde. O levante popular - que mais tarde ficaria conhecido como a revolta dos Canjicas - termina em frente ao hospício. O Doutor Bacamarte recebe a massa rebelada com a autoridade e a coragem do grande cientista que julga ser, deixando o povo perplexo com sua serena superioridade intelectual. Nesse momento, chegam a Itaguaí os dragões (soldados) do Rei, para restaurar a ordem. No meio da confusão, os dragões acabam aderindo aos revoltosos e a revolução triunfa, tendo o barbeiro Porfírio como chefe.
Em seguida, Porfírio procura o Dr. Simão Bacamarte e diz que não pretende mais destruir o hospício. Que bastava uma revisão nos conceitos de loucura do médico, liberando os enfermos que estavam quase curados e os maníacos de pouca monta. Que isso bastaria ao povo. O alienista ouve o barbeiro, fazendo-lhe algumas perguntas sobre o que tinha acontecido nas ruas e conclui que também o líder dos Canjicas estava louco, assim como aqueles que o aclamavam. Em cinco dias, o Doutor Bacamarte mete na Casa Verde cerca de cinqüenta adeptos do novo governo, gerando outra grande indignação popular, que só termina quando entra na vila uma força militar, enviada pelo vice-rei.
A partir daí há uma "coleta desenfreada" para o hospício. Quase ninguém escapa. Tudo é loucura para o Doutor Bacamarte. O barbeiro, o boticário Crispim, o presidente da Câmara e a própria esposa do alienista, Dona Evarista, são recolhidos para tratamento. Quatro quintos da população de Itaguaí já estavam "agasalhados" no seu estabelecimento, quando o médico volta a surpreender a vila, anunciando ter concluído que a verdadeira doutrina sobre a loucura não podia ser aquela e sim a oposta. Ou seja, todos os que até ali tinham sido considerados loucos eram sãos; e os sãos, loucos.
Loucos agora são aqueles que gozam de perfeito e ininterrupto equilíbrio mental. Os que têm retidão de sentimentos, generosidade, boa-fé, inclusive o padre Lopes, que sempre defendera o médico, ou um advogado que "possuía um tal conjunto de qualidades morais que era perigoso deixá-lo na rua”.Os novos alienados mentais são divididos por classes. A dos modestos, a dos tolerantes, a dos sinceros, a dos bondosos, etc.
Assim, em seu processo de cura, o Doutor Bacamarte pode "atacar de frente a qualidade predominante de cada um". O modesto aprende o valor da vaidade; o generoso, o valor do egoísmo; o honesto, o valor da corrupção. Nunca doenças mentais tinham sido curadas tão rapidamente. Antes de um ano, todos os pacientes recebem alta. Itaguaí está livre da loucura.
Porém, no final de tudo, o alienista dá-se conta de um fato terrível: ele, Simão Bacamarte, não possuía vigor moral, amor à ciência, sagacidade e lealdade? E estas não eram as características de um verdadeiro mentecapto? Portanto o último louco da vila é ele mesmo. Então, o alienista tranca-se na Casa Verde, em busca da cura de si próprio, morrendo dezessete meses depois, "no mesmo estado em que entrou".
Com a leitura de O Alienista pode-se perceber claramente que Machado faz uma sátira ao cientificismo vigente nas duas últimas décadas do século XIX. A pretensão do Doutor Simão Bacamarte de classificar a mente humana e de estabelecer critérios rígidos sobre a sanidade mental das pessoas é ridicularizada impiedosamente. A Ciência confunde-se com empulhação e com a possível demência do próprio alienista.
A base cultural e histórica do Realismo é a ciência, que dominou as atenções na Segunda metade do século XIX, chegando mesmo a adentrar no século XX. Varreu o mundo uma onda impetuosa de materialismo, como o positivismo de Conte, o evolucionismo de Darwin, que se alastra pelo espírito humano como uma verdadeira paixão. Nasce daí o gosto pela análise (psicológica ou sociológica), a objetividade, a observação, a fidelidade, a impassibilidade, a impessoalidade, etc. que são as características dominantes no Realismo.
Neste sentido, pode-se dizer que o Realismo foi um estilo engajado-vetado para a realidade, assumindo uma atitude polêmica e crítica em relação à sociedade burguesa de então e aos valores apregoados pela época. Em suma, como chegou a afirmar Eça de Queiroz, "o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade”.
A sátira do conto, no entanto, não se volta apenas contra a ciência. Está patente também no livro a figura do barbeiro que encarna a figura dos chefes políticos. E dos ápices de ironia e sarcasmos cheio de humor a passagem em que Machado de Assis narra a tomada do governo pela força das circunstâncias, quando se invertem os papéis de modo ridículo e cômico
Embora no século passado, a obra machadiana se revela sempre atual, visto que a problemática apresentada pelo autor tem sentido universal: são os eternos problemas humanos que Machado, na sua visão aquilina, analisa de maneira profunda e pungente. "E vão assim as cousas humanas!" – exclama ele no cap. XI. As coisas humanas de qualquer época, porque as verdades patéticas e pungentes que envolvem a espécie humana não envelhecem. Talvez envileçam. Os séculos correm e é sempre a mesma loucura, numa repetição cada vez mais acelerada e alucinante.
Não será a Psiquiatra ou a Psicanálise moderna uma réplica da Ciência do Doutor Bacamarte? Será que a Casa Verde caberia os loucos do mundo atual!
E o barbeiro? Não encarnaria nele as pretensões políticas de tantos regimes que alastram pelo mundo, sobretudo na nossa malfadada América Latina? Há tantos exemplos de governos que sobem e descem como o barbeiro.
Como se vê, O Alienista é de uma flagrante atualidade. Não somente realidade brasileira ou mesmo baiana, mas sim se pode dizer que Itaguaí é apenas uma metonímia: na verdade, o fenômeno é universal, - o que parecia "uma ilha" era, na verdade, "um continente", como começava a suspeitar o Doutor Bacamarte.
Por trás da sátira machadiana, escondem-se os eternos e pungentes dramas humanos: é o homem na sua caminhada pela vida fora, numa corrida louca e insensata. Mais do que uma história, O Alienista é uma interpretação condensada na angústia do homem em face de sua condição de alienado na terra onde vive e sua prisão apenas desfeita pela morte ou pela loucura impiedosa. É o problema do homem de sempre em face das mesmas interrogações; que é certo que não é? A verdade? Quem está isento? Que vale, que não vale?
A maneira como Machado de Assis narra os fatos é bastante humorística dentro do contexto da obra. O episódio de Itaguaí, sem dúvida, não desmente as nossas tradições políticas e revolucionárias. Nem mesmo desmente as tradições do povo latino-americano. Estão aí os exemplos atuais: quase que diariamente se vê governo que cai e outro que sobe nos países latino-americanos. E o pior é que, muitas vezes, o poder cai nas mãos de mentecaptos, como esse barbeiro do conto, que pouca coisa entende além da navalha e da barba. Levados pela ambição do poder e pelas circunstâncias do momento, se elegem como ditadores vitalícios em defesa dos ideais democráticos e da ordem, em manobras rápidas e fulminantes, em que muitas vezes acabam por resultar em governos catastróficos, onde o povo apenas sofre.
Segundo o mestre Aurélio Buarque de Holanda, louco é aquele que perdeu a razão; alienado; extravagante; demente; que perdeu o bom senso e está dominado por intensa paixão. E a loucura seria a falta de discernimento, a insensatez, a imprudência ou simplesmente tudo o que foge às normas, que é fora do comum.
De acordo com definições tão amplas paremos a nos questionar: o que é a loucura? Quem são os loucos dos nossos dias? Como identificá-los? Quais são os comportamentos considerados normais pelas convenções sociais? É normal se convencionar comportamentos e classificá-los em compartimentos estanques da mesma forma que convencionamos o nome das coisas? O que justificaria dizer que você está lendo um jornal e não um livro? O alienista é o especialista em doenças mentais, atualmente mais conhecido como psiquiatra. Mas como delimitar a tênue linha que separa o sensato do insensato?
Seria loucura apresentar deformidades físicas e debates histéricos em programas de televisão. O que as pessoas fazem hoje em nome do entretenimento? Queimam um semelhante vivo, assistem a programas de televisão onde outros se digladiam para ganhar um mísero cachê ou por pura inocência.
O que é mais assustador é o índice de audiência de tais programas. É normal um aluno passar o ano inteiro estudando na turma específica de saúde e ao final do ano prestar vestibular para Direito, só porque é um curso concorrido? A visão profética de Machado de Assis sobre a espécie humana se revela válida e sempre atual. O fenômeno, igualmente, não é brasileiro, nem mesmo latino-americano. O fenômeno é, sem dúvida, universal.
Percebo muita semelhança entre características do Realismo, como a preocupação de mostrar a realidade, formando-lhe um retrato fiel e preciso, com a teoria critica, uma vez que essa, busca através da reflexão, da analise da realidade, traçar um perfil da sociedade em que vivemos, identificando possíveis caminhos a serem tomados, instigando através dos seus autores os indivíduos a posicionarem-se diante dos fatos.
Compreendo que hoje ainda vivemos essa luta entre a razão e a loucura narrada por Machado, ainda hoje os homens não tem muito discernimento ou atitude para se desvencilhar das armadilhas que lhes são impostas por outros homens, ainda vemos por exemplo, a manipulação das mentes, com o advento do neoliberalismo então, temos uma sociedade cada vez mais esvaziada de valores e conceitos importantes para o bom desenvolvimento da coletividade humana.